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Foto do escritorJill Muricy

A Morte é só uma Vírgula

A confiança é uma virtude incomum na vida das pessoas, muitas desconhecem o seu autêntico significado. Ela é exigente e leva-se tempo para conquistá-la. A confiança entre os seres humanos nasce de uma relação saudável, da amizade verdadeira, do puro amor.


Padre Gilvan Manuel, exemplo de confiança em Deus/ Foto; arquivo pessoal


Já a confiança em Deus é algo profundo, todo aquele que conhece a Deus, confia n'Ele cegamente. Entrega tudo ao Todo-Poderoso, pois tem confiança na Sua misericórdia. E nela não há questionamentos, dúvidas, desespero, medo.


O amor e a confiança são inseparáveis, quem ama confia e quem confia ama, quem ama entrega tudo ao amado e quem confia aceita as consequências da escolha desse amor.

Não é porque uma pessoa confia em Deus que ela não será surpreendida por coisas desagradáveis. Para quem tem fé no autor da vida às circunstâncias podem até mudar, mas a confiança na vontade divida e imutável.


O Início:


Para o padre Gilvan Manuel da Silva Sousa, de 40 anos, da cidade Piripiri, no Piauí, viu a própria confiança aumentar ainda mais em Deus, quando viu os pais e dois irmãos partirem para eternidade na mesma semana por complicações da COVID-19.


Padre Gilvan é de família numerosa, os pais dele Manoel Anísio e Antonia Rosa, foram um casal extraordinário, que soube educar tão bem na fé os 12 filhos. Foram casados por 62 anos.


Manoel e Antonia nasceram no interior de Pedro II, no estado piauiense, nos anos 80 resolveram morar com a família em Piripiri em busca de uma vida melhor.


Quando vieram do sitio para a cidade já trouxeram os dez filhos, sendo que padre Gilvan e a irmã mais nova nasceram na nova residência, em um bairro muito simples na periferia da cidade, pouco desenvolvido, ainda não existia luz elétrica e nem água acessível a todos, o bairro era pouco habitável.


Em um ambiente de muito amor, harmonia, solidariedade entre os irmãos, era quase uma norma na casa: Os mais velhos ajudavam os mais novos. Os pais de origem simples sempre deram o melhor para cada filho, tiveram privações como muitas famílias numerosas.


Mas o padre Gilvan cresceu em um lar de muito amor, vendo o exemplo dos genitores. Os filhos eram obedientes em tudo aos pais, pois sabiam que era para o bem deles na fase adulta.


Padre Gilvan foi um menino muito tranquilo desde a infância, bastante estudioso, muito organizado e responsável. Gostava de ir para a escola e as atividades da Igreja. Desde a mais terna infância sempre teve uma inclinação para as coisas religiosas, quando pequeno encantava-se com as fotos dos santos na parede da casa e as velas acesas para a oração.


Entre os cinco e seis anos a mãe dele relatava que o garoto já dizia que queria ser padre. A única participação da família na Igreja era nas missas nos dias festivos.


Antonia sempre ficava se perguntando de onde vinha esse desejo tão forte e seguro do filho de ser padre, porque não havia grandes influências em casa até mesmo os contatos com os padres da cidade eram raros e difíceis.


Entre os sete e 12 anos era muito comum a brincadeira de missa com as crianças vizinhas, mesmo sem deixar de brincar também de bola e outras brincadeiras comum da época, mas “celebrar” a missa era quase uma brincadeira diária e pertinente. Sempre gostou de arte, música, teatro, circo, por isso acabava tendo uma facilidade muito grande de amizade com os vizinhos e na escola.


Com as pessoas próximas e os colegas de classe ele já era conhecido como o padre, por isso o comportamento era exemplar e cauteloso com os amigos. Todo esse crescimento da vontade de ser sacerdote foi acompanhada pela família sem nenhuma pressão psicológica ou induzida.


Os pais e os irmãos deixaram esse desejo florescer naturalmente, pois todos eram católicos, alguns iam sempre à missa outros não.

Por circunstâncias diversas, três irmãos que residiam em São Paulo tornaram-se evangélicos, mas acompanharam o desejo de Gilvan ser padre, pois já estava com data marcada para entrar no seminário. Nunca houve nenhuma divergência em casa sobre os temas ligados a religião, sempre preservaram os valores da família.


Após concluir o Ensino Médio, fez o pedido para entrar na Congregação da Missão Padres Lazaristas, em Fortaleza, no Ceará. Era fevereiro de 2002, padre Gilvan estava com 21 anos quando ingressou na primeira etapa de Formação, eram seis jovens da Congregação, em uma faculdade católica de quase 300 seminaristas.


Foram dez anos de formação. Após o último ano de teologia em Belém ele foi ordenado diácono e enviado para a cidade de Tianguá, no estado cearense. Em 20 de julho de 2011, foi ordenado padre na terra natal.


Escolheu o lema sacerdotal em 2010, faltando quase um ano para se ordenar padre, ele estava no ônibus lendo um livro sobre o testamento do papa João Paulo II em uma parte que o próprio Pontífice relatava que quando ele ia celebrar a missa do 25º aniversário papal ouvia no coração Jesus falar: “Pedro, Tu me amas?”, logo aquela frase tocou profundamente no coração do então diácono Gilvan e, as lágrimas caíram do seu rosto e concluiu:


A vocação é uma resposta ao amor de Deus, humanamente Gilvan não achava ser merecedor torna-se padre, mas Deus chama quem Ele quer, por isso ao Senhor ele respondeu como Pedro “Senhor, Tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo” (Jo21, 17) e desde aquele dia a vida presbiteral dele tem sua base nesse lema.

O maior desafio de ser padre não são as consequências dessa escolha como: morar sozinho, distante da família e renunciar por amor à vocação familiar, mas em ter um discernimento diário para poder atender e lidar com tantas pessoas e problemas em uma vida cheia de complexidade que é a paróquia, as pessoas exigem muito dos padres e julgam muitas vezes.


Mas existem outras que colaboram que se doam junto com o padre na missão, isso é muito bom.


A COVID-19:


Toda a família sempre teve muito cuidado com os perigos do vírus, Antonia era a mais cuidadosa e sempre advertia os filhos, muitas vezes pediu para o padre Gilvan não ir a cidade deles, porque estava tento muito contágio.


Na realidade foram dez pessoas infectadas na família, os pais, filhos e cunhados. O primeiro contaminado foi do irmão, Vicente, em São Paulo, ele escondeu um pouco e quando foi ao hospital o pulmão já estava bem comprometido, ficando logo internado.

Pe. Gilvan com os pais, Manoel e Antonia, ambos faleceram de COVID-19/Foto: arquivo pessoal


O segundo foi um cunhado, que ficou em casa e conseguiu a cura. Depois veio outros cunhados e irmãos e por ultimo a irmã Rosinha, o Pai Manoel e depois a mãe Antonia. Todos ficaram em choque. O contágio do vírus gera nas pessoas muitas perguntas:


Será que vai ser necessário ir para o hospital? Será que eles serão intubados ou não? O que vamos fazer? Logo dez contaminados de uma vez? Particularmente padre Gilvan ficou “meio apavorado” porque estava distante deles, por ser dirigente das atividades paroquiais não podia ficar ausente da missão.


Houve uma preocupação geral na família, como cuidar de cada um, sem contagiar mais pessoas?

Desde a primeira onda da COVID-19 em 2020, padre Gilvan conseguiu realizar na paróquia várias atividades em relação à Pandemia como: Drive Thur de coletas de alimentos para as famílias, momentos fortes de oração, um número de telefone para as pessoas pedirem oração e aconselhamento, bênçãos aos doentes por vídeos e muitos terços em live pedindo a cura dos infectados.


Já em 2021, nesta segunda onda, ele realizou os mesmos trabalhos de ajuda às famílias dos falecidos e dos que contraíram o vírus. Ao saber dos próprios familiares doentes intensificou as orações, assim como aumentava as preocupações, principalmente quando os pais dele foram infectados.


Ao ficarem internados no hospital da cidade de Piripiri, padre Gilvan logo foi de Fortaleza para lá; ainda visitou os dois e realizou a extrema unção dos enfermos. Tudo parecia ir muito bem, com o quadro de internação (alguns intubados).


Já dentro da Semana Santa, na Quarta- Feira Santa, veio a sequência das mortes: Primeiro o pai Manoel Anísio e o irmão Vicente Manoel, no dia 31 de março. Depois a mãe Antonia, dia 04 de abril e a irmã Rosinha, dia 05 de abril. A vida de um padre também é Via Sacra, são nos momentos mais dolorosos da jornada terrena que se escreve os capítulos mais extraordinários da própria existência.

Pe. Gilvan com os irmãos, Rosinha e Vicente, ambos faleceram de COVID-19/Foto: Arquivo pessoal


A notícia da morte de cada um foi algo muito doloroso para o padre Gilvan, mesmo sacerdote e compreendendo a dimensão da vida eterna, não foi fácil viver tudo humanamente.


Receber a ligação do hospital com a notícia foi terrível para ele, sentia-se envolvido numa dor imensa da separação e rumando ao desespero, ninguém consegue viver isso friamente, a morte desequilibra nosso ser. A cada dor da morte, percebia como recebia uma força incrível da fé e da presença de Cristo Vivo.


Então decidiu abandonar-se às emoções daqueles dias junto com a família e confiar em Deus, autor da vida. Foram 15 dias entre muitas lágrimas derramadas, dor no coração, uma saudade imensa, mas nunca sentiu remorso ou desesperança pelos fatos acontecidos.

Não passou pela cabeça:” Nossa eu deveria ter feito isso com eles, deveria ter aproveitado isso ou aquilo. Não, nunca passou isso na mente dele”.


As emoções que o envolveram eram resultados de um forte amor vivido entre a família. Ele perdeu de uma única vez as duas referências “Pai e mãe”, isso que machucava, mas não afetava a fé e muito menos o seu sacerdócio.


A SUPERAÇÃO:


Ninguém pode parar no tempo, diante de uma situação dolorosa, a vida se faz caminhando com alegrias e perdas. Diante de todo o “trágico acontecimento” da morte dos quatro familiares é preciso ressignificar os dias e as situações de cada um.


A cada amanhecer, ele aprende a viver sem eles, mas com eles no coração. Não tem sido fácil a ausência diária, mas o amor que existe entre os irmãos é imenso e capaz de transformar tudo e assim, vão fortalecendo cada dia. Dar um novo significado e aprender são as palavras desse momento pós-luto.


Diante de todo acontecimento fica a necessidade de amar sempre uns aos outros como família. A união familiar é fundamental para superar os momentos difíceis, ninguém vive sozinho ou isolado dos problemas dos outros.


Padre Gilvan teve essa graça de nascer em uma família numerosa e unida, isso permanece ainda como uma lição que é preciso continuar com a nova geração que nasce.

Pe. Gilvan, um exemplo a ser seguido/Foto: arquivo pessoal


Ver quem amamos partir não é um prejuízo, quando se confia em Deus absolutamente, entende-se que tudo tem um tempo determinado e nenhum ser humano é deste mundo, mas do céu. Padre Gilvan entregou a Deus aqueles que ele amava.


Pois tudo pertence ao Soberano, a saudade que ficou é a lembrança de que valeu a pena cada momento juntos, a morte foi só uma vírgula, o texto continua na eternidade.

Atualmente, o sábio sacerdote é pároco da paróquia São Pedro e São Paulo, da Arquidiocese de Fortaleza, no Ceará. Ele tem tocado muitas pessoas ao redor do mundo com sua inspiradora história de superação. Os fiéis se sentem honrados por serem conduzidos por um tão Sacerdote encorajador.

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