top of page
  • Foto do escritorJill Muricy

A Sobrevivente das Ruas

Ressignificar os acontecimentos da vida e extrair lições do fracasso e da dor, são dádivas concedidas pelo do autor do tempo.

Luanda de França, exemplo de SUPERAÇÃO/Foto: arquivo pessoal


O sofrimento é inevitável, mas saber sofrer, aprender e crescer com ele não é um fato comum entre os seres humanos. Exceto, àqueles que são exemplos de superação.


A Infância


Há quem não acredite, mas pessoas extraordinárias são provadas pelas adversidades desde muito cedo. Na primavera de 1973, no dia 06 de novembro daquele ano, Edna Maria Gonçalves de Souza, uma jovem mulher que ganhava a vida como lavadeira, deu à luz sua segunda filha, Luanda de França de Souza. Na Maternidade Mãe Pobre, no bairro de Engenho Novo, zona norte da cidade do Rio de Janeiro.


Após três dias do nascimento da menina, mãe e bebê receberam alta hospitalar. Antes de irem para casa, Edna percebeu que a recém-nascida não era a sua filha, pois a pulseira no braço da criança estava com o nome de outra pessoa, além das características físicas da menina serem bem diferentes de Luanda.


A mãe comunicou o fato imediatamente à enfermeira responsável, que constatou o erro, mas a mulher que estava com a criança de Edna, já havia ido embora. O desespero reinou em toda maternidade, vários profissionais de saúde correram para rua na tentativa de encontrar a mãe com a bebê trocada. Minutos depois de forte tensão, encontraram Luanda com a mãe errada no ponto de ônibus, não muito longe do hospital.


Os enfermeiros explicaram a situação, e as bebês ficaram com suas mães biológicas. O que Luanda iria enfrentar nos anos seguintes da própria vida, não chegaria aos pés do caos do hospital.


A existência é imprevisível, mas seus capítulos são surpreendentes.

Em uma comunidade no bairro de Quintino Bocaiuva, na zona norte da capital fluminense, Luanda passou os anos mais nobres e sossegados da sua infância e início da adolescência. Quando criança, ela brincou bastante de pique lateiro, pula corda, pique esconde, casinha, amarelinha e até de fazer comidinha.


Juntamente com Mônica, Leda e Nilda, todas são amigas até hoje. Embora, a situação financeira da família Souza fosse muito difícil, ela soube aproveitar os momentos leves da vida.

Não possuía material escolar adequado, às vezes, apagava as letras no caderno com miolo de pão, porque não tinha uma borracha. Estudou até a quinta série do ensino fundamental. Nunca teve roupas e sapatos novos. O maior sonho dela, era ganhar uma boneca no Natal do Papai Noel, sonho que carrega até hoje.

Adolescência


Na verdade, a adolescência da frágil garota foi muito curta, ou melhor não foi vivida. Aos 12 anos, começou a trabalhar em casa de família como babá, dormia no serviço para ajudar nas despesas de casa, composta por dez irmãos.


Quando estava com 15 anos foi morar fora, teve um relacionamento e engravidou da primeira filha, Amanda. O namoro não durou, então, ela sustentava a menina sozinha.


Em curto espaço de tempo, entrou em outro romance, engravidou de dois meninos gêmeos, e mais uma vez o namoro não vingou. Depois se envolveu com outro homem e teve a Sabrina, depois Vitória. Enquanto isso, ela batalhava sozinha para sustentar a casa como faxineira.


Primeiro Maior Conflito


Certo dia, a carioca foi fazer um serviço na casa de uma mulher conhecida do pessoal da igreja que frequentava a vila onde morava, ela pensou em recusar o trabalho, pois tinha quatro filhos pequenos, e sua caçula, Sabrina, na época havia acabado de nascer. Nesse período, a futura patroa sugeriu que Luanda levasse as crianças, pois ela mesma olharia a garotada enquanto a ingênua mãe faria a faxina.


Na primeira vez, tudo funcionou maravilhosamente bem, a mulher ficou com a bebê o tempo todo no colo, ela não podia ter filho. Mas pretendia ter uma criança a qualquer custo, sendo até capaz de arrancar uma das garras da mãe violentamente.

A vida seguia o seu percurso, mesmo com quatro crianças pequenas, Luanda trabalhava como diarista cada dia em uma casa diferente, não fazia corpo mole, pois sustentava a família sozinha. Era uma mãe dedicada que não deixava faltar nada aos filho.

Daí aquela patroa pediu para olhar a Sabrina, enquanto Luanda realizava os serviços das outras residências, e ao fim do dia a mãe pegaria a menina na casa da mulher. E assim o fez, os dias iam passando e a senhorita ficou apegada à criança. Por causa disso, a patroa pediu para ficar com a garota durante a semana e no fim de semana, a mãe ficava com a pequena.


Os dois meninos de Luanda nasceram com problemas cardíacos, além do cansativo trabalho diário a genitora os acompanhava ao médico várias vezes ao mês. Nem sempre dava para ir buscar a Sabrina para passar o fim de semana em casa. Às vezes, via a menina uma vez a cada 30 dias.


Então, a mulher pediu para criar Sabrina, ela não maltratava a menina que era portadora de bronquite e renite. Luanda recusou a proposta. Quando a garota fez sete anos, a família França mudou-se para o bairro de Bangu, com as quatro crianças: Amanda, os gêmeos e Vitória, a caçula dos irmãos. A carioca foi até à casa da mulher buscar Sabrina, porém, a ex-patroa não queria dar a criança, depois de muita conversa e cara fechada acabou entregando a menina.


Sabrina começou a se adaptar à família que pouco conviveu outrora, ela estudava na mesma escola que os irmãos, mas os capítulos seguintes da vida dos Franças seriam bem desagradáveis. Pouco tempo depois, Luanda recebeu uma intimação no serviço para comparecer ao fórum de Bangu, ao chegar lá soube que a ex-patroa havia entrando na justiça com pedido de guarda de Sabrina. Desesperada, a trabalhadora pediu ajuda ao pai da criança que sempre foi ausente na vida da menina.


Na primeira audiência, a mulher não compareceu, a mãe continuou com a guarda da filha. Na segunda audiência, o juiz alegou que Luanda além de incapaz não possuía condições financeiras de sustentar a criança, e por isso estava perdendo a guarda da menina. Foi determinado pelo magistrado que a cada 15 dias Sabrina poderia ficar com a própria mãe. Depois, a mulher proibiu Luanda de ver a garota. O chão foi violentamente arrancado daquela guerreira mãe de família.


Ninguém tem o direito de tomar um filho da própria mãe, nem o Estado ou alguém influente. Deve-se levar em consideração que um ser humano não é um objeto, tanto a mãe quanto o filho tem sentimentos que devem ser respeitados simultaneamente. Como no Brasil não existe justiça humana, por outro lado, a divina é infalível. E um dia ela se manifesta com toda franqueza.

A brava cozinheira não soube lidar com aquela delicadíssima situação e se aprofundou na bebida e nas drogas. A saudade da filha era insubstituível.


Luanda começou a esquecer-se de si mesma, viver largada e largar os outros filhos. A fase pela qual passara era indescritível. Daí ela adoeceu gravemente com complicações nos ruins, ficou internada três meses. Ao sair do hospital, soube que a mãe Edna Maria havia vendido sua casa enquanto estava internada. Ou seja, Luanda e os filhos não tinham onde morar. Já no bairro de Campo Grande, Luanda começou a pagar aluguel, e as coisas apertaram muito. A solução foi ir morar com a própria mãe.


Amanda e os gêmeos foram morar juntos na Vila Kennedy, em Bangu de aluguel. Luanda ficou somente com a filha Vitória. A vida dela continuava se deteriorando nos vícios.

Uma Perda Irreparável


Luanda seguia vivendo uma existência completamente sem sentido, o tempo passava, mas, as coisas não mudavam para melhor. Os filhos dela estavam na adolescência, com 17 anos, em um fim de semana do mês de agosto de 2013, eles foram à uma festa com os amigos, próximo à Estrada do Campinho, local onde Luanda morava em um prédio abandonado.

Os gêmeos desapareceram na companhia de outros três rapazes, sem deixar pista. Pelo que se sabe, os dois garotos não eram envolvidos com coisas erradas. Mais um capítulo desagradável acontecia sem previsão de acabar. Após o impactante episódio, o sol desapareceu sem deixar vestígio na vida da sofrida mãe. O que ela mais queria era encontrar os meninos, chegou a procurá-los em todo buraco, na esperança de achá-los.


Depois do desaparecimento dos filhos, Luanda estava sem chão, ela ainda sofria por ter perdido a guarda da filha, ou seja, perdeu três filhos em pouco tempo. Teve o próprio coração dilacerado. As circunstâncias, levaram Luanda a morar na rua. Que abandonou o namorado e a filha caçula, Vitória, na época com 12 anos. Estava sem vida, sem casa, sem três filho, sem sentido para viver.


Nenhum sofrimento dura para sempre, um dia sem avisar o sol volta a brilhar!

Ida Para as Ruas

Luanda adentrou violentamente na maconha, craque, cocaína, prostituição, alcoolismo. Andava nua pelas ruas da cidade, alucinada pelas drogas. Tomava banho pelada no chafariz na frente das pessoas, não tinha mais consciência do que fazia. Havia perdido completamente a identidade, ela não sabia mais quem era.


Se perdeu no profundo abismo. A escuridão reinou por muito tempo. Mas não há fundo do poço que mão de Deus não alcance, não existe problema, maldição que Deus não possa resolver.

Luanda recebeu ajuda de psicólogos e assistentes sociais, enquanto morava nas ruas da cidade do Rio, período que foi acompanhada principalmente por Marcelo e Janine, eles foram fundamentais na recuperação da então, ex-moradora de rua, ex-drogada e ex-prostituta.


Certo dia, perambulando pelas ruas da cidade, Luanda conheceu o Cláudio Júnior, paulista, jovem, que usava drogas e possuía conflitos familiares, também morador de rua. Os dois começaram a namorar e juntos enfrentaram os desafios de ser um casal sem teto.


Ambos presenciaram várias mortes e violências contra moradores de rua. Ele, diversas vezes passou na frente de facadas destinadas à Luanda que, embriagada arrumava brigas. O rapaz fazia tudo para protegê-la. Pois a realidade nas ruas estava mais agressiva que o comum, eles tinham medo de serem queimados enquanto dormiam.


Quando um dormia, o outro ficava acordado para não ser queimado, fato corriqueiro na época. Daí os enamorados tomaram a decisão de irem embora para a capital paulista, a família dele estava lá. A carioca morou quatro anos nas ruas, ela e o paulista decidiram sair determinadamente do mundo das drogas e começar uma nova vida.

Foram embora do Rio de Janeiro, deixaram drogas, alcoolismo, prostituição, penúria e toda ausência de dignidade humana. Abandonaram a escuridão. A determinação é uma força interior inexplicável, seus frutos são extraordinários.

Chegando à capital paulista, o casal foi morar com a mãe dele. A princípio a sogra não era favorável ao namoro do filho com uma mulher mais velha, mas depois ela apoiou a relação. Os dois moraram na casa da mãe do Cláudio por três meses, depois Luanda deu início ao trabalho na reciclagem, posteriormente, serviços gerais e cozinheira. Conseguiram alugar e montar uma digna casa para viver.


Eles casaram no civil, Luanda realizou o sonho de se casar de noiva, pois havia passado por muitas experiências amorosas, mãe de cinco filhos, mas era a primeira vez que estava se casando. O casamento a tornou a mulher mais feliz do mundo disposta a viver. Nunca havia se sentido amada de verdade por um homem.


O terno do noivo foi doado por um cadeirante, o vestido da noiva foi emprestado. Uma amiga deu um dia de princesa, fez cabelo e unha, e essa mesma amiga deu um bolo de casamento com o bonequinho que Luanda queria.


Outro amigo levou os noivos de carro até o cartório, a aliança do casal foi comprada em uma barraca por um real. Na hora da cerimônia um fotógrafo registrou tudo, porque Luanda era a única vestida de noiva. Ela não entendia o porquê de ele fazer as fotos, ele respondeu que as fotografias ficariam guardadas para ela pegar um dia quando pudesse pagar pelo serviço.


A família do noivo fez uma simples e farta recepção surpresa para os recém-casados, Luanda quase desmaiou ao presenciar a cena. A intensa luz solar começara a iluminar os dias que haviam escurecidos, uma nova história começava a ser escrita nos capítulos daquela existência frágil e sofrida.


A SUPERAÇÃO: O Recomeço no Rio de Janeiro

O amor vence todas as batalhas, Luanda começara a viver dias leves, fato que ela desconhecia. Após três anos morando em São Paulo, a carioca estava entrando em depressão, se continuasse na cidade paulista, correria o forte risco de voltar às drogas. Lembrou-se da família. Sentiu vontade de estar com ela. Cláudio e Luanda voltaram ao Rio. Edna Maria ofereceu a própria casa para Luanda construir a dela no segundo andar. O paulista arrumou emprego, construiu a laje em cima da casa da sogra, mas ficou desempregado antes de dar início a construção do próprio lar.


O casal estava sem emprego e sem casa, Luanda mais uma vez se viu indo morar nas ruas, mas dessa vez seria diferente. Ela foi para internet explicar a situação que estava passando e pediu as pessoas material de construção, ela recebeu tijolos, cimentos, areia... Porém, não possuía dinheiro para pagar o pedreiro. Então ela mesma começou a fazer massa para construir a própria casa, havia uma pedreira dentro de si mesma, que a necessidade a fez despertar. A residência tem quarto, sala, cozinha, banheiro, área de serviço, feitos pelas mãos Luanda. O casal vive feliz e honrado nesse simples e aconchegante lar.


A VIDA nos Dias Atuais

Atualmente, Luanda de França tem 48 anos, trabalha como diarista e com reciclagem. Estudou até a quinta série do ensino fundamental, mas ganhou uma bolsa de estudos e quer ser assistente social, para ajudar quem mora nas ruas. Reside no bairro de Campo Grande, na cidade do Rio de Janeiro. Tem boa relação com as três filhas.

Luanda com filhas: Vitória (à direita), Amanda e Sabrina/ Foto: arquivo pessoal


Sabrina que no passado foi tomada por uma patroa, procurou Luanda para entender o que havia acontecido, a mãe contou como tudo aconteceu. Ela se desligou completamente da família que a criou, e hoje mora perto de Luanda, ama e respeita a mãe biológica. Ninguém imaginava que um dia Luanda pudesse ter Sabrina de volta.

Luanda e os netos: Ana Júlia (à direita), Erik, Micaelly e Henry/Foto: arquivo pessoal


Luanda nunca mais foi morar nas ruas nem aderiu ao álcool e as drogas. Frequenta uma igreja protestante. Tem uma vida digna ao lado de Cláudio, das filhas e netos. Resgatou dentro de si mesma a coragem para viver intensamente, é feliz e dona de um sorriso gigantesco, muitas feridas que ela possuía não existem mais.


A frágil mulher que tanto sofreu para construir a própria casa, escreveu uma nova história, reconstruiu-se e deu sentido a própria vida. Não há nada que Deus não possa fazer! Luanda de França de Souza é exemplo de superação para a humanidade!



Comments

Rated 0 out of 5 stars.
Couldn’t Load Comments
It looks like there was a technical problem. Try reconnecting or refreshing the page.
Destaque
Tags
bottom of page